sábado, 12 de março de 2011

Inquietações


Sábado, 12/03/2011 - Um compasso de espera... Tenho estado todos estes dias com o Francisco... Estivemos, hoje, o meu marido e eu, junto dele ... Ressaca... O seu longo período de abstinência no hospital apanhou-o agora... O Francisco convalesce e, de repente - quem diria? - ressaca... O país da sua geração cresceu a «sopas de cavalo cansado»... Lutou na guerra colonial... Os homens ilharam-se, pouco a pouco, nos recantos da sua miragem... Permanecem engolfados na sua imaginação tumultuada... É a sua história que eles trazem nas pupilas... A ansiedade em que ficam... Só vendo... Deus queira que essa privação passe... Que renasçam de si mesmos, e do destino que lhes coube em sorte...

segunda-feira, 7 de março de 2011

Pequena meditação... (em redor do Francisco)...


1. Segunda-feira, 7 de Março - O Francisco continua a melhorar... Desta vez vim ainda mais animada com o seu estado de saúde... Está a reagir muito bem ao antibiótico... Vê-se que ganhou mais cores... Tem o rosto mais iluminado... Talvez se safe, finalmente, desta pneumonia que esteve quase a levá-lo... Pareceu-me mais forte, mais fresco, mais esperançado... Está mais «ligado», enfim, como dizem os meus filhos... O termo «ligado» tem aqui este sentido: o de uma certa «sintonia»...

2. «Estar ligado» é estar em sintonia, permeável à energia que lhe faço chegar, vinda de mim e de todos os que o acompanham... aqui no blogue ou no Brasil e em Portugal, cada um em sua casa... Mais permeável mesmo que isso não suponha nenhuma imediata concordância ou, felizmente, alguma espécie de sujeição... Quando se exprime um ponto de vista, é comum, no Brasil, perguntar-se «imediatamente», logo a seguir: «tá ligado?»

3. O que supõe, nessa sintonia, uma certa continuidade com o seu exterior... A comunicação de uma energia, a comunicação de uma comunicação, ou de uma certa comunhão... Uma certa comunidade tonal, digamos assim... De energia, de «tónus» em «sintonia»... Uma «sintonia» como a que o termo «ligação» aí supõe, envolve, assim, a experiência de uma certa tonificação, de uma determinada «disponibilidade», uma certa vivacidade... Ela é, ainda, anterior a qualquer espécie de conceito ou compromisso definitivo... A qualquer espécie de opinião definida ou de tomada de posição, de manifestção de força, também...

4. A tonificação, o vigor da sintonia ou da ligação, não são aqui a força plena, bruta ou abrupta... Um certo compromisso firmado, um certo nexo de «pertença», gerado por qualquer pacto expresso, tem sempre como condição de possibilidade uma certa e prévia ou antepredicativa «ligação», uma certa e tonificante «extensão» tonal... E o Francisco, posso dizer, hoje, que ele «está ligado»... Mais atento, desperto, ligado... Mais tonificado e disponível... Para que alguém esteja «ligado», é preciso, pelo menos, que entre o seu espaço interior e o seu espaço (afectivo) em redor, no seu espaço interior e exterior, haja uma espécie de continuidade, de propagação vibratória, de sensibilidade comovida, de permeabilidade «co-mocional», de livre-trânsito prévio ou de anterior atravessamento ... Tal é a pré-condição de todo o «trauma», de toda a barreira ou clausura, de toda a dissociação ou morte, de todo o choque ou de toda a resistência...

5. E, portanto, antes de qualquer conceito ou opinião formada, é preciso, para se estar «ligado», que haja uma espécie energização prévia, de antepredicativa confusão ou antecipada continuidade tonal, de prévia corrente de energia e de disponibilidade, de entrega e de absoluta e não-premeditada entrega ou vivacidade... É isso estar «ligado»... É como se disséssemos «sim», mas um sim que não é ainda nenhuma concordância, nenhuma aceitação determinante ou determinada... Como se disséssemos «sim» à vida, à corrente de vida que através de nós se proaga... Isto antes de «sabermos»... Antes, sequer, que nos perguntem e respondamos o que quer que seja... Estar ligado significa dizer um sim anterior a qualquer limite... Um «sim» anterior a toda a recusa ou negação, a todo o limite ou escolha, a toda a decisão precipitada pela indecisão e a indecidibilidade...

6. O que é, na verdade, sobretudo conforme à nossa mais íntima verdade... À nossa verdade biológica - posto que somos prematuros e o nosso código genético tem de ser activado, em contacto com o nosso Outro, a nossa mãe ou o nosso Rosto... E psíquica, também... Porque somos biologicamente prematuros e psiquicamente... desejantes... Porque do ponto de vista do sujeito que somos, da libido e da pulsão, somos essa primeira cativação, essa nossa dependência, esse nosso desejo do desejo do Outro... Pois, quando nascemos não «temos» ainda nada... Não podemos sequer ser «nada»... Somos um «eu-posso», se assim se pudesse dizer, pré-egológico... Um eu-posso ainda anterior ao «eu»... Uma espécie de vontade que preside ao trânsito da substância materna...

7. Nada senão essa nossa «ligação», essa ligação sem possessivo, esse nosso «sim» pré-egológico, pré-lógico e pré-cronológico também... Um sim antes de qualquer compromisso, de qualquer pergunta ou de qualquer resposta que se lhe siga... É nessa disponibilidade da «sintonia», nessa acolhimento da energia pela entrega do corpo exposto, nessa abertura pré-lógica e pré-cronológica que se há-de precipitar «o que» / «quem» depois viremos a ser... É essa ligação que faz, antes da possibilidade de qualquer resistência, de qualquer oposição ou diferenciação supostamente plena, a possibilidade do dom e do perdão, a possibilidade da impossibilidade... É ela que faz, num certo estádio, com que os bebés «acabem por aprender» a seguir os gestos e as inflexões da voz de sua Mãe, a voz e o sorriso do seu grande Outro...

8. E isto antes mesmo de a voz desse Outro poder ser dita, por sua vez, por algum Outro desse Outro, fixando-lhe o sentido ou instaurando-lhe o limite... A ligação colhe e acompanha os movimentos do olhar... Ela é a confiança do corpo exposto, a abertura do nosso ser como acolhimento... Nós somos, em primeiro lugar, essa nossa disponibilidade, essa nossa sintonia, essa nossa abertura ao outro que é também o Outro ou Deus... Cada um de nós é uma espécie de Abraão, fiel a esse apelo intimamente estranho e estranhamente íntimo do Outro em nós... É isso «estar ligado» ou disponível: estar capaz de «continuar (n)o exterior»...

9. SER capaz de «ser», para além dos limites estreitos da nossa percepção, ou do nosso conceito, da nossa auto-imagem... Estar ligado supõe, portanto, uma espécie de CORRENTE... Não de opinião, mas de «CO-MOÇÃO», de MOVIMENTO conjunto, ou de CO-MOVIMENTO e, portanto, de «religação» ou de RELIGIÃO... Daquela religação que a palavra «religião» quer ela própria dizer, na sua etimologia... E assim, «estar ligado» é, também, participar do movimento conjunto de uma «fé» relativamente «indistinta», ecuménica e tolerante, aberta, por definição... Pois a fé pressupõe essa disponibilidade ou essa «entrega» que é ainda anterior às certezas da evidência, do conceito, da visão ou da constatação...

10. O que não quer dizer que ela deva privar-nos de pensar e, sobretudo, de pensar criticamente... Mas quer apenas dizer que a ligação ou a sintonia da «co-moção» são as pré-condições de possibilidade de toda a crítica, o sentido imanente da exigência de todo o conceito, de toda a evidência perceptiva ou razão... É aquilo que ainda me mantém a falar, mesmo com quem discordo, sempre que e enquanto discordo radicalmente de alguém, o que me mantém a falar com esse mesmo alguém: porque continuaria eu a falar com alguém senão por uma sintonia pré-lógica e pré-cronológica, pré-analítica mesmo, que me constitui a mim como «mesmo» a partir do outro, «mesmo» como ser disponível ao Outro? «Pertencer» é ser continuado e continuar no exterior (por) alguém...

11. Mas é também, uma coisa não vai sem a outra, continuar alguém no «seu» exterior... E o «exterior» não é um meio homogéneo... O «exterior» é o campo da dobra e da heterogenei-dade... E essa «ligação» é, portanto, por um lado, anterior a qualquer distância objectiva, a qualquer lógica simplesmente dissociativa e, por outro lado, diferenciada... Continuando o meu exterior sou diverso e vário, múltiplo a perder de vista... Essa ligação com o exterior é constitutivamente diferencial e ao mesmo tempo contínua: pois é ela que que me dirige a atenção e que me faz voltar a cabeça quando ouço, por exemplo, um som que se destaca...

12. Porque a volto se ninguém me chama? Se ninguém me nomeia ou evoca, se ninguém invoca o meu nome ou me convoca? Que há de comum entre o meu nome, nos ressaltos da sua sonoridade e da sua articulação, e um silvo estridente que se assemelha ao terrível apito da ausência ou do chamamento, da morte inclusivé, que ressoa nas máquinas que, no hospital, atestam que o meu coração não bate já, que ele vacila ou entra em falência, que o meu corpo entrou em si mesmo, se remeteu ao seu mais insondável segredo ou mistério? Um som soprado ou emitido como o sinal de ausência de frequência cardíaca, uma espécie de silvo da serpente, como que a serpente que aparece nos símbolos da medicina, aquela de cujo veneno se retira, igualmente, o antídoto para a sua mordidela fatal...

13. Um apito que é a própria lisura de som inerte, contínuo na sua alarmante estridência, a própria insignificância, na sua extensa e linear distância, em relação a qualquer compreensão, a qualquer sentido perceptível e possível, dir-se-ia? É essa mesma disponibilidade pré-analítica e pré-cronológica, aquela que aproxima ou reúne o nome próprio ao alarme da emergência médica, o som agudo de um aparelho ao apelo de uma identificação e de uma compreensão que pode vir a dar lugar a uma história...

14. É essa mesma «ligação» a uma História que bem pode acabar por seguir-se ou por vir a começar, que bem pode precipitar-se e vir a contar-se, a começar a contar-se como realmente acontecida... Que, enfim, bem pode contar-se como acontecida mesmo já enquanto decorre... Isto é, mesmo «já» enquanto ainda mal sonhada, mesmo quando ainda a si mesma antecipada, antecipada no seu projectado fim, precipitada na sua própria invenção, na antecipação do seu anteprojectado ou desejado fim, realmente acontecida como ficcionada na sua precipitação de si mesma... O que é uma história cujo rumo ou cuja rota, cujo destino ou desfecho nos não é dado de antemão e que, nessa mesma medida, é uma história verdadeiramente acontecida, verdadeiramente vivida? Não será a vida mesmo isso, a invenção ou antecipativa anteprojecção de diferentes fins como sentidos e finalidades possíveis, esperados e sonhados para histórias que nos envolvem e nos transportam no seu próprio decurso?

15. Histórias a decorrer ou que, decorrendo ou acontecendo, mesmo ainda enquanto o nosso discurso permanece em busca da sua própria conclusão, do seu próprio sentido conclusivo ou da sua própria morte, histórias à medida da história que nos vai então acontecendo por dentro das palavras que usamos e que nos levam numa direcção ou noutra, histórias em que vai acontecendo uma outra história, em que nos vai acontecendo uma história sempre outra, uma história ainda perdida ou suspensa do seu próprio rumo, do fim a que há-de, dir-se-á então, pertencer?

16. É isso a «ligação»... Visto que foi assim que nós conhecemos o Francisco: nada conhecendo dele, ouvindo-o nas suas meias-palavras e ouvindo-nos a nós próprios nos seus protestos, muitas vezes imperceptíveis, ou a desafiar a nossa capacidade de compreensão... Nada conhecendo do que pôde contar historicamente como o depois realmente acontecido, que pôde realmente contar-se a si própria em nós, ou ser tida em conta para fora do seu esperado fim... A «ligação» não é um resultado da consciência... Nem mesmo da previsão... Muito menos da consciência que se busca a si mesma, ou um seu efeito, por fora do vivido ou na sua abstracção, ou redução abstractiva... Pelo contrário: NADA DE GRANDES ANÁLISES para se «ESTAR LIGADO»...

17. Nada de grandes «análises»... A NÃO SER - e a aposta é aqui desmesurada - A DIFÍCIL ANÁLISE QUE ACEITA A CONTRA-ANÁLISE E, PORTANTO, AQUELA QUE CONDUZ À EVIDÊNCIA DA NÃO-EVIDÊNCIA... Não será isso precisamente a fé? A fé anterior e constitutiva da possibilidade de toda O CEPTICISMO, DE TODO O LUXO da descrença ou do pessimismo e, portanto, uma fé sempre a salvo, sempre disponível para ser recuperada, em sintonia com a sua própria «sobre-vivência» à evidência? Na ligação, não se aconselha nenhuma persistência no traçado dos limites, no contorno dos espaços... Porque só se chega à ligação (à religião) por esta espécie de hiper-rememoração e de «HIPER-ANÁLISE»: a que aceita, na sua prórpria CONTRA-ANÁLISE, prosseguir até à pressuposição da mais remota evidência, da evidência mais recuada, a evidência da impossibilidade da evidência... A evidência da impossibilidade da evidência na sintonia própria da «PRÉ-ANÁLISE»...

18. A ligação ou a religião deveriam então ser esta «ligação», mas sempre enquanto momento de abertura à análise... A ligação da fé é sempre a sintonia de uma disponibilidade pré-analítica, que é sempre EXIGENTE E PROMISSORA DA ANÁLISE... Porque, de contrário, segundo um velho preconceito dos racionalismos mais dogmáticos, não haveria no sujeito senão CONSCIÊNCIA... Ora, nós não somos Deus... E isso, esse dogmatismo contra-religioso, nos desligaria e arrancaria a nos mesmos, ou nos desgarraria dos que nos são mais próximos, nos arrancaria a nós MESMOS, nos extrairia da nossa continuidade, da suspensão ou do esbatimento de fronteiras que somos, para nos deixar cair na INDIFERENÇA da nossa diferença INDIVIDUAL... Sempre que acolhemos - integramos e, por outro lado, respeitamos, numa dupla e tanto mais contraditória quanto justa obrigação ética, não apenas o OUTRO que nos continuará, mas também o OUTRO de quem seremos continuação ou ligação... Estamos ligados... Mas estar ligado não significa anular-se, nem indiferenciar-se, muito pelo contrário...

19. A ligação é o que nos alterará, fará de nós OUTROS... Outros dos que nos continuam e a quem nós continuamos... Porque o contrário disto, esse exercício dogmático do recalcamento dessa diferenciadora e alterante ontinuidade, nos distancia da vida e nos sujeita ao culto da diferença encapsulada na diferença plena.... Cedemos então ao medo e aos nossos mais temíveis espectros: «e se fosse precisamente o contrário de tudo o que espero?» É a pergunta típica de quem está DESLIGADO... O Francisco, graças a Deus, deveria hoje dizê-lo, «está ligado»... Está, pelo menos, mais ligado... Está... como dizer isto de outra maneira? Está... eis uma palavra, uma expressão possível: ESTÁ VIVO... O FRANCISCO ESTÁ VIVO!...

20. Não (apenas) por respirar, mas sobretudo por «estar ligado»... Por me estar ligado a mim e ao José Paulo... Que todos os dias queremos saber dele... Que nele vemos, todos os dias, o exemplo da coragem que muitas vezes nos falta... Mas que o não queremos sacrificar à responsabilidade de ser, para nós o modelo exclusivo, da coragem que não sabemos se conseguimos CONTINUAR... Falo da tua CORAGEM, FRANCISCO... ÉS UM HOMEM DE MUITO VALOR E DE MUITA CORAGEM e EU E O JOSÉ PAULO TE ADMIRAMOS E QUEREMOS MUITO BEM, DESDE A PRIMEIRA HORA, FRANCISCO... E tu apertas-me a mão, enquanto te falo... A mão do Francisco é uma tenaz de dois dedos, enganchados na minha... E ele, o Francisco, TU, VOLTA-SE ou VOLTAS-TE, AO OUVIR-ME, para o OUTRO LADO, QUE ME CONTINUA, para chorar... «Ao ouvir-me» porque ele me «eESTÁ LIGADO»... Porque não pode, na posição e na situação em que está, evitar que as lágrimas lhe corram... Pois que corram, livres, pelo campo da tua face...

domingo, 6 de março de 2011

O Regresso...


Domingo, 6 de Março – Eis o Francisco de volta… Está melhor, graças a Deus... «Olá, Francisco! Então, homem?»... O meu beijinho chega-lhe à pele ainda fresca... Descola dela uma espécie de chilreio... Um som estridente, estranhamente garrido... Encontro-lha ainda com o odor fresco da espuma de barbear recente... Desperto, o Francisco... Mas entubado ainda, o que o priva de falar… «Francisco, já sabes que não podes tirar o tubinho, não sabes?» Repito-me, sim, eu sei, mas não consigo evitá-lo... Sei disso muito bem mas paciência... Quero que ele melhore... Faz que sim, com a cabeça... Já sem máscara de oxigénio, desde ontem… Ao menos isso... Respira e suspira, embora, de vez em quando, lhe venha aquela expressão de visível irritação…

Talvez com o tubo na boca, que o não deixa articular-se… Ou com as voltas a que o sujeitam as AAM (Auxiliares de Assistência Médica)... Que, então, o não deixam mover-se por si e o vêem e revêem completamente nú… E «elas» são também as enfermeiras... «Elas», pois claro, e as assistentes… E até os médicos... Os médicos e os doentes… Por esta ordem, se seguirmos a ordem dos seus olhares... Uns porque o reviram, na sua higiene diária… O Francisco «toma banho na cama»… O que lhe desagrada, o que o diminui ou o perturba, profundamente... O que às vezes o convence, até, de estar mais velho do que pensa... Imagino eu, Francisco...

«Imagino, eu? Que parva que sou!! Não imagino não, Francisco. Não teria imaginação para isso»... «Talvez imagines que imaginas»... Dir-me-ias tu talvez... Soltas, então, naquela tua voz baixa, de resmungado murmúrio: «Então isto é alguma coisa?»… Virado e revirado, lavado e ensaboado: «isto é alguma coisa?»… Lembro-me de que quando te irritavas gaguejavas ligeiramente no «isto»... «Ist.. Ist'é alguma coisa?» - dizias tu, irritado... Até barbeado, por todas estas mulheres…

Aplicadamente minuciosas, aquelas… Apressadamente ocupadas, as outras… Tudo sem que possas sair da cama em que estás… Sem sequer te poderes sentar, sobre a cama e por detrás do cortinado... Mas soltaram-te, pelo menos, as mãos e os pulsos… E, portanto, agora revira-los, de vez em quando, como quem se admira de si mesmo, ou compra um imaginário relógio novo, de horas visíveis…
Uns porque o voltam... Outros porque gesticulam na sua direcção – «que será agora? Oh sorte…»... Mas não consegues dizer nada... Gesticulam e observam-te fixamente, como se quisessem entrar-te pelos olhos dentro… Que pode alguém fazer, assim deitado? Não sabem o que é estar deitado? Como podem curar-me então, se o não sabem?

A cirurgia, tal como a medicina no Ocidente a pratica, desconhece a técnica Oriental da imposição das mãos... Que é uma delicadeza só tida com pessoas «deitadas»... Estar deitado é dispor-se a seguir, a seguir e a ser a linha-limite, que divide a terra do céu... É ser e seguir essa linha na imobilidade do desamparo, de não se poder já contrariar a força da gravidade... O Francisco só conhece, pelo contrário, uma medicina agressiva e cortante, subtractiva e invasora, da extracção e do entalhe... Uma espécie de escultura do tempo, no contratempo da ciência... Como se o tempo da vida se tornasse, com a nossa doença, na contra-escultura de uma ciência, vinda na sua contra-mão, procurar atrasar a morte...

Uma ciência a contratempo da vida, portanto... Isto, da ciência, na contra-escultura do vivido, a fazer descontar-se do tempo de um tombo, de um passo ao lado... A ciência a girar, em sentido contrário, os ponteiros do instante, Francisco... Que se serve de próteses, de máscaras e de luvas, para entrar no nosso corpo sem, «na verdade», atingir «a sua» verdade... E munida de extensões metálicas apendiculares, para remexer no interior do teu corpo... Para lhe retirar excrescências e extrair pólipos ou grânulos, na nossa nunca sentida engrenagem, eliminando atritos e alisando dobras, ou saliências que ameaçam proliferar...
Põe aquele seu ar irritado, o meu querido Francisco, quando o olham... Aquele ar de quem apenas se vê a si mesmo à transparência, como que posto para o lado de lá de quem assim o olha, mesmo quando o seu olhar se desvia...

Apenas disponível para pensar noutra coisa… Mas não tem, na verdade, para onde olhar… Tudo é aquela mesma vasta sala, imenso aquário onde se flutua, quando se caminha sobre o chão de azulejo, como sobre a rede caída de um trapézio há muito abandonado... Lançado de mão em mão, entre o dia e a noite, entre hoje e amanhã … O que temo é que hoje seja, Francisco, o
súbito fôlego de um teu último hausto… Vens à tona e despedes-te… Até me parece mentira ver-te assim, mais fresco, mais rosadinho... Oxalá Deus te conserve, te mantenha vivo por bastante mais tempo... Bem sei que só me podes abanar a cabeça em resposta, enquanto te falo… Que não te posso sequer falar dos meus medos…

Ponho-me a imaginar o que isso será, Francisco: estar deitado e não poder falar quando nos falam… Eu que tenho o pavor das doenças... Ser olhado e observado de alto abaixo, de cabo a rabo, ser visto e revisto… Acenas-me com a cabeça, em assentimento… – que há-de ser, imagino eu, Francisco, também um modo de te escapares, de te esgueirares quando a coisa não te agrada… Ou então páras os olhos sobre mim, à medida que te falo… Como se espreitasses do teu lado de dentro e fosses, agora mais tu do que eu, quem se observasse… E a ti mesmo te observasses, nesse teu atento cálculo dos possíveis, a tua sobrevi-vência nos meus olhos e nos meus gestos…

Lembras-te de nos dizeres, um dia que te perguntámos, porque não ias até à sala de convívio: « Não gosto de grupos…»? Rimo-nos todos, com gosto… «Ah, Francisco! Olha à tua volta e repara em quantos seremos… Quantos, mais tarde ou mais cedo?! Consegues contar-nos? Nem eu consigo, … Inúmeros – cada um de nós na singularidade da sua sorte … O médico ontem deu-te quarenta e oito horas… Não a ti, na verdade, Francisco, mas a mim… Para que eu me vá habituando: à impossibilidade de me habituar… Quarenta e oito horas para reagires ao antibiótico, Francisco… Mas hoje estás, realmente, com bom aspecto… Talvez seja eu, hoje, que não estou lá muito bem… Um beijinho, Francisco, até amanhã…

sábado, 5 de março de 2011

A ponte...


Sábado, 5 deMarço - Acabo de sair do UCISU... O Francisco escapou, hoje de manhã, por um triz. Por um verdadeiro milagre ainda com vida. Entubaram-no de novo... Está com «uma pneumonia muito grave», diz-mo o médico espanhol que vem junto de mim, «que lhe apanhou os dois pulmões»... Mudaram-lhe o antibiótico inicial, como eu ontem já soubera, porque se mostrou ineficaz para a combater. Observo, com mais atenção, os monitores, sobretudo o da direita, que me responde a algumas perguntas mais imediatas:

Tensão arterial boa - 12,8 / 8,6 - boa saturação, «mas um pouco taquicárdico» - cerca de 117 pulsações por minuto - adianto-me eu ao médico, que me veio falar e que acaba de chegar... De forma que, durante a minha visita de hoje ele está de novo sedado. «Acha que ele tem condições de se safar, doutor?» «Bueno, vamos a ver»... Está agora menos dependente da máquina do que já esteve hoje de manhã. «Quase patinou» hoje de manhã, diz-me ele... Estranho ouvir a palavra a respeito do Francisco... Entubámo-lo e estabilizámo-lo... Entretanto uma enfermeira chega a seu lado e pede-lhe atenção para outro doente. Ele afasta-se...

Olho em redor, pela vasta sala quadrangular. É enorme, com uma franja imensa a toda a sua volta, de nichos de camas isoladas por cortinados. É um cenário verdadeiramente dantesco... Uma espécie de bojo intestino do Hospital, em que o mistério que separa a vida da morte se estampa na palidez dos rostos e me parece, de repente, vir a alojar-se, como cifrado, nos arabescos desses trajectos que, de um lado para o outro, de umas camas para outras, vejo os médicos desenharem, nos seus gestos esbracejados e as enfermeiras, outra vez de um lado para o outro, vão percorrendo em extensão...

E começo a ter a impressão de estar num gigantesco tapete flutuante, onde o chão suspenso começa imperceptivelmente a ondular... Passado pouco tempo abana largamente, como se alguém, em câmara lenta, o tivesse vindo sacudir com a sua enorme e poderosa mão invisível... Tento aguentar-me no balanço... E o suor começa a correr-me, frio, pela testa e pelas têmporas abaixo... Todo o edifício oscila agora dentro da minha cabeça... Olho de novo para o Francisco, que desta vez não me vê, a quem tornaram a pôr a sonda nasogástrica e que mantêm um tubo de dreno... Fixo-me nele para não me desequilibrar, para não mergulhar na minha tontura: «Hoje não me vês Francisco».

Olho de novo em volta. «Aqui está ALGUÉM» - penso agora para com os meus botões, mas a minha vontade é gritar... Tenho, por isso, de sair daqui rapidamente... «Aqui está ALGUÉM que serviu o seu país e passou», como dizer? Talvez assim: «Que serviu o seu país» e «passou SI-LEN-CI-O-SA-MEN-TE, por todas as provações» que, entretanto, lhe saíram ao caminho. Desde o dia 1 de Fevereiro passado... Abeiro-me dele, a passo incerto e insegura de mim, e a sua tensão sobe rapidamente e a máquina apita... Torno a afastar-me e mantenho-me, prudentemente, a vê-lo de longe...

O médico abeira-se-me, de novo, e completa a sua ideia: tudo depende de como o Senhor reagir ao antibiótico com que agora está... Referia-se ao Francisco, claro... QUE É, VERDADEIRAMENTE UM SENHOR... Ouço-me por dentro da minha cabeça: QUE É UM SENHOR repito-me, vezes sem conta, de mim para mim... E agradeço ao médico a sua franqueza... Aperto-lhe a mão... E volto-me para sair... E as lágrimas vêm-me agora... e correm e engrossam por dentro de mim, como se ali agora chovesse muito, como se desabasse o céu todo na minha alma, como se tudo em mim aluísse, como se eu mesma escorresse, no tombo ou no trambolhão morto de uma avalanche surda, e começasse a fazer um frio nocturno, cá por dentro de mim, e um abismo puxado do avesso começasse a subir por mim a dentro, como um enorme capuz sem cabeça... Justamente agora? Porquê agora? Nunca chorei, Francisco, acredita, até agora...

Mas também, porque não agora? Agora será um qualquer AGORA... Até amanhã, Francisco... O José Paulo está cá comigo... Abeiro-me, dou-lhe um beijinho... Não olho para o monitor, que agora não apita... Cá estarei amanhã, para ver se continuas ainda... na mesma cama... digo já longe da cama 15. A enfermeira Sílvia vinha já na minha direcção. O José Paulo já teve de sair para eu entrar... «Acabou-se o tempo da visita»... Dispo a bata verde e descalço as luvas amarelas... Atravessamos ambos calados, de mão dada, o corredor do piso 3, atulhado de macas e de gemidos. De vez em quando cruzo-me com colegas de trabalho a quem cumprimento e falo, que me falam carinhosamente... Ninguém percebe que choro... Ainda bem...

sexta-feira, 4 de março de 2011

A maré viscosa... (O labirinto)


4 de Março, sexta-feira - O Francisco foi transferido... Para o UCISU - Unidade de Cuidados Intermédios do Serviço de Urgências... Não foi ainda para o piso dos operados... Removeram-lhe, no entanto, tudo o que havia para tirar. De forma que, do que tinha de mau, no estômago e no esófago, o Francisco está livre... Eis, portanto, uma esperança... Uma nesga aberta... Desse ponto de vista, a operação correu bem, soube eu hoje pelo médico... Mas enfim: infelizmente, nem tudo está bem... E o Francisco está com uma pneumonia... Deram hoje por ela... E começaram hoje a dar-lhe um antibiótico mais eficaz... Deus queira que te corra tudo bem, Francisco...

Não tem já o tubinho no nariz... Puseram-lhe antes uma máscara de oxigénio. Por causa da dificuldade com que respira. Tem os pulmões apanhados e produz secreções abundantes, que lhe são extraídas por aspiração, periodicamente. Mas está mais conciliado, mais apaziguado... Tem agora uma só mão presa... Explico-lhe que não pode, em circunstância alguma, tirar a máscara de oxigénio, porque isso o iria cansar em extremo.... O que seria extremamente perigoso, neste momento... Pode significar um tombo no precipício... Um escorregão fatal... Apercebo-me de que o Francisco me observa atentamente, enquanto falo com o médico...

Perscruta todos os movimentos que faço, tudo o que ouço e digo... Porque se apercebe de que por mim passa informação que lhe é vital... Está portanto atento a todos os sinais... Nunca deixa de perguntar: «e o marido?» Todos os dias pergunta pelo «marido». Amanhã o José Paulo vai comigo. Ficou preocupado com o estado de saúde dele... E tenho a certeza de que ele sossegará mais, quando o vir... Oro para que o Francisco melhore... Para que ele se escape do peso morto dessa espécie de maré viscosa, que o pode arrastar para o fundo de uma fatal inanição, o pode vencer pelo cansaço... Senhor meu Deus, não o leves ainda, mesmo que saiba que ele ficará bem contigo, se ele é o homem que eu penso que é...

Livra-o desse atoleiro de águas paradas, que ameaça agora subir-lhe garganta acima. Dá-nos um pouco mais de tempo, para que nos cumpramos e reencontremos todos... Afasta-o do minucioso labirinto escuro em que ele ameaça entrar... Aquele mesmo labirinto em que nos traz o nosso infra-mundo, o mundo de nossa mais subterrânea e informe vida a germinar, com a sua obscura e secreta geometria, naquele enredo dos nossos mais fundos medos. Escuta, pelos seus mais ínfimos canais, o lamento desta minha atemorizada, aflicta e trémula, a seu modo silenciosa e sibilina oração... Que esta minha oração seja também a do Francisco. Amanhã vamos ambos ver o Francisco. Dou dois beijinhos ao Francisco e despeço-me dele: digo-lhe muitas palavras de carinho e de esperança e pergunto-lhe depois: «esperas por mim, Francisco? Acreditas em Deus? Espera até amanhã...»

quinta-feira, 3 de março de 2011

«Tou cansado da vida»


3 de Março - Desabafo do Francisco, hoje: «Tou cansado da vida». É um suspiro... Um desabafo... Olho para ele, fixamente. «Como te compreendo, Francisco...» - digo-o de mim para mim... Compreendo-o, sim. Porque não o deixam mexer-se, e ele está habituado a ser dono de si, e da sua vida... Mas eu recebo a frase em pleno rosto... Ela estala no ar, como um chicote... Dói-me, lancinate, como uma vergasta vibrante, vertiginosamente descida sobre o meu sucumbido ânimo... Ainda espadana no ar... Contorce-se, como um animal enérgico que saltasse, mortalmente ferido, atingido por alguma dor súbita, alguma perfuração ou golpe cortante... E fica-me ali às voltas, a dar-me voltas à cabeça, a latejar... A zumbir-me como uma vespa, com o seu ferrão ameaçador... Já ensurdecedora, a frase do Francisco, depois do choque que produziu em mim, a zumbir por dentro dos meus ouvidos. Dói-me essa frase... Dói-me ouvi-lo dizer aquilo... Atinge-me, fere-me na minha esperança, na nossa preocupação... Tenho a certeza de que o meu marido se vai preocupar, quando chegar a casa...

Olho para ele ainda fixamente. Faço-lhe, pela primeira vez, uma cara mais séria. Carrego a expressão de um ar mais grave... Dá-me vontade de o repreender. Mas não consigo. Eis o que me sai: «olha Francisco, não estás cansado coisa nenhuma!!! Não imaginas quantas pessoas se preocupam contigo todos os dias, quantas me perguntam por ti todos os dias. Estão sempre ansiosas por saber novidades tuas... Não está nada cansado não senhor!!! Seja paciente!!! Ouviu?! Não diga asneiras!!!»... É o máximo que lhe consigo dizer... Porque me é impossível não compreender a saturação em que está... A incomodidade e a saturação em que está, a exasperação... E o que me sai, o que digo, é num outro tom de voz que vai. Não consigo «ralhar» com ele... Como haveria de ser capaz? O Francisco fez -meu Deus!!! - uma operação delicadíssima... extremamente invasiva, muito agressiva...

E está ainda preso à cama por duas braçadeiras de velcro que, apesar do extensor que lhe deixa alguma liberdade de movimentos, lhe seguram os pulsos a uma certa distância da cama, para evitar que mexa nos «tubinhos» da alimentação parentérica e da drenagem de líquidos... Além disso, não pode beber água e tem os lábios secos... E está mais fraquinho, porque a sua alimentação se faz à base de nutrientes segundo um líquido, especialmente produzido nos laboratórios do hospital, que lhe é introduzido no estômago pelo nariz. Deixam-lhe, portanto, apenas algum espaço de movimento... Uma liberdade relativa. Não pode chegar à boca com as mãos, nem ao nariz... Nem à sonda nasal, nem ao tubo de dreno, que lhe extrai secreções do esófago... Mantém-se na Unidade de cuidados Intensivos...

Têm receio de que ele contraia alguma infecção... E ele está ainda muito débil, para poder sair... Como espantar-me com o seu tom de «condenado»?
Mas não lhe permito que tenha pena de si próprio... «Tudo menos isso, Francisco» - digo de mim para mim... Olho para ele, faço-lhe uma festa no cabelo e pergunto-me, a mim mesma, quando o irão passar para o cadeirão... É
coisa que não fazem com ele ainda na Unidade de Cuidados Intensivos. Só depois, já em convalescença, nas salas dos operados, no 4º piso. É a fase seguinte, no processo da convalescença. É o habitual, na recuperação do pós-operatório... A partir de certa altura, todos os dias um pouquinho de cadeirão... E depois cama de novo...

Tudo tem de ser assim, agora. Tudo vai ter de ser assim: espaçado, intermitente, segmentar... Tudo é, nesta fase da vida do Francisco, «escasso»... Raro e, ao mesmo tempo, difícil e precioso... Tudo vai ter de ser por tentativas, por pequenos gestos interrompidos, pequenos passos divergentes, sempre ensaiados e hesitantes... Como se caminhássemos sobre o fio precário de um equilíbrio nunca garantido, sempre reconquistado... Tudo se joga agora nessa corda frágil que se agita à nossa janela. Como o fio do horizonte à janela de um barco em pleno mar. Tudo depende, agora, da consistência e da persistência desse nexo, que nos divide a terra do céu e nos ajuda a distingui-los. E que nos mantém abertas as portadas do nosso ânimo. De vez em quando elas fecham-se, nesta fase mais agitada. Os seus batentes rodam, revoltos e batem violentamente. Movem-se como asas que se debatam, num voo atrapalhado e pesado, impossível por preso ainda ao chão de que se quer libertar, ensaiado sobre o campo do horizonte de um «lá fora» de que há muito fomos separados.

Do espaço de horizonte que entre eles se abre vêem-se o campo e as traseiras da nossa vida, o modesto quintal da nossa intimidade, ali o modesto acúmulo dos nossos bens. Ali estão eles, no fio bambo do estendal que ainda balouça, e onde pendurámos ontem as nossas memórias. Ele desliza e balouça, então, pairando como um suspensor. Balouça aos nossos olhos: está nele tudo o que somos...
Tudo de lá nos vem, agora, em pequenos fragmentos. Como o aceno de um rápido drapejo de um lençol, que lá se estendesse, junto daquela janela; ou o brilho súbito de um reflexo da luz que bate no vidro além; ou a nuvem a poeira que se nos levanta e envolve, quando o tempo esfria e o vento sopra.

Tudo em fragmentos, despojos dispersos, coisas várias e também rostos, expressões, sons, cacos do grande vaso quebrado pelo tempo da nossa memória, restos espalhados no chão de outros tempos, sobras do engalamento das nossas vidas... E na paciente recolagem desses pedaços, no enfiamento irregular das suas rememorações, a frase do Francisco vibra ainda como um chicote no ar... «Estás cansado da vida, Francisco?» pergunto de mim para mim... E passo-lhe, de novo, a mão pela testa...
Ele vira-se para mim: «e o marido?» Lá está ele... Abre-se-me um sorriso.... Depois rio-me, mais aliviada. Ele diz que tem saudades do José Paulo. Acho graça a essa sua preocupação que sempre teve, com o meu marido, seu ex-companheiro de sala. Conheceram-se ambos numa das salas do piso da Gastroentrologia, no Hospital de Faro.

O meu marido foi internado no mesmo dia que ele, com uma hemorragia intestinal. Esteve internado durante 4 dias. Depois normalizou, sarou e retomou, gradualmente, a alimentação normal de uma dieta de prevenção contra o colesterol. Deixou de comer carne. Passou a comer peixe. Sempre peixe grelhado, carbo-hidratos (batata, arroz) e legumes (couve de bruxelas, cenoura, couve-flor, bróculos, alface, tomate, cebola, alho, etc.). Foi-se restabelecendo: «o marido está a dar aulas, Francisco. Vem ver-te no fim-de-semana... Mas manda-te um forte abraço e diz que tu não te podes deixar vir abaixo, ouviste? Que tens de esperar por ele...»... Dá cá um beijinho, Francisco. Até amanhã... No fim de semana vimos cá os dois, «o marido e eu», está bem? Ele acena que sim e agita a mão de Capitão Gancho.

O José Paulo apresentou-me o Francisco. Contou-me que nunca o vira com visitas, durante os quatro dias que lá esteve... Que quando lhe perguntava se precisava de ajuda (queres que te traga outro urinol, Francisco? precisas de alguma coisa de lá de fora, da enfermaria) ele agitava aquela sua mão de Capitão Gancho e, educadamente, dizia, num gesto largo e desprendido, para nosso espanto: «Eeeeeeeeuuuuu? Naaaah! Tá tudo bem... Obrigado...». E sentava-se na cama em silêncio. Francisco, não vais até à sala de convívio? E ele olhava-nos com aqueles seus dois olhos cavos, a expressão sombria e ponderada de quem pensa um pouco e dizia-nos: «Naaahhh... Não gosto de grupos...». «Mas, Francisco, não se trata de grupos, trata-se de te mexeres e caminhares...» Queres ir lá connosco?» «Hummm... Vocês podiam fazer-me um favor?» «Claro Francisco!» «Se me podem ir comprar um maço de cigarros, para eu poder ir lá fora fumar um de vez em quando...» E lá fomos os quatro: eu e meu marido, o Francisco e o José, seu vizinho de cama.

A sua mão-dos-dois-dedos, essa espécie de extensão preensora, como que mecânica, com que, depois do brutal acidente de trabalho, acontecido já há anos, agarrava agora a colher de plástico. Movia-a no ar, quando nos cumprimentava ou, simplesmente, nos estendia ou recebia alguma coisa. Ou então naqueles gestos mais evasivos, sempre que discordava de alguma coisa. Lembrava-nos uma dessas tenazes de remexer o carvão aceso... Começámos a vê-la agitar-se mais, quando ele começou a comer as sopinhas de legumes que lhe levávamos. Pedimos para isso autorização às médicas e às enfermeiras do piso. Ele podia, não havia contra indicações, segundo o que constava na ficha médica do paciente da cama 8. Sopinhas, com feijão, alho francês, batata, cenoura, couve, bróculos, etc. temperada apenas com a junção de uma sopa de legumes em pó, uma «sopa de pacote» como se costuma dizer...

Não apenas sopinhas, mas também iogurtes, sumos... Iogurtes da «Leiteira», que descobrimos que ele tolerava melhor do que o «Fortimel» que lhe era servido no Hospital. Porque era doce... Com sabor a Morango, a Caramelo, a Bolacha... Mas sempre iogurtes sem pedaços, iogurtes inteiramente líquidos, porque a dieta do Francisco era líquida. E os sumos da Compal, de que ele gostava... Íamos eu e o José Paulo, dia sim dia não, numa excursão ao supermercado, restabelecer o stock do Francisco. Quando sobrava púnhamos aquilo em espera, na geleira da enfermaria. E dizíamos-lhe: «Francisco, tens dois iogurtes na geleira...»

Mas o Francisco não os pedia, com receio de ferir susceptibilidades e pôr contra si o Hospital. Porque não comer aquela «comida horrível» que a princípio lhe davam (uma papa de batata com cenoura, inteiramente sem sal), aquela «comida de galinhas» que lhe parecia feita de milho, e que ele punha de parte, era uma descortesia, uma falta de educação, cometida para com quem o mantinha vivo. Só mais tarde nos apercebemos disso. E nessas alturas, com receio de indispor contra si o pessoal que de si cuidava, obrigava-se a comer aquela «comida de galinhas». Comia a resmungar, como sempre: «então, diga-me lá, isto é alguma coisa?» O companheiro da cama 7 ria-se com gosto. O José - carpinteiro, que coincidência estranha... - muito trémulo ainda, ria-se desenfreadamente, de costas voltadas para nós, virado para a janela, só de o ouvir... Eram assim as gracinhas do Francisco...

quarta-feira, 2 de março de 2011

«E o marido?»


2 de Março - O Francisco melhorou, de ontem para hoje... A olhos vistos: «Olá Francisco!» Dou-lhe o beijinho, mas ele está hoje impaciente... «Francisco, sabes quem eu sou?» «Seeeeiiii»... E inclina a cabeça, com um ar de quem não aprova a minha dúvida... Olha depois para mim e pergunta: «e o marido?». Reconheceu-me... Já tem a mão mais lesta, menos trôpega. Quando responde, move-a no mesmo gesto largo que sempre lhe conhecemos... Digo-lhe que «o marido» está a dar aulas. Só pode ir vê-lo no final de semana... Tenta levantar a mão, mas não pode... Está preso à cama, que tem as guardas laterais levantadas. Pede-me uma tesoura para se libertar.

«Não podes tirar isso, Francisco. Não podes mexer no nariz».
Não podes tirar a sonda do nariz... O Francisco tem uma sonda nasogástrica... Está niquento, sistemático, coca-bichinhos, hoje... Incomoda-o, aquilo... Está-lhe colada ao nariz com um adesivo... Apetece-lhe arrancar o raio do «tubinho»... É ele que o põe inquieto... Que o faz resmungar: «ah, sorte malvada!»... Emite de si para si, em cada resmungo, sons imperceptíveis, incompreensíveis. Mais graves, de meias palavras. Está já mais desperto, mais enérgico, menos ansioso... Mais decidido, mais imperativo, também.... Mais «pronto», exigente, dir-se-ia... Mas está mais sensível, mais irritável... O que é natural... Os doentes ficam sempre mais sensíveis, irritáveis... E o Francisco, neste momento, fala e ouve-se melhor. Está mais «articulado», também.

Os efeitos da anestesia vão-se esbatendo... Está até ligeiramente casmurro: «Quero água!» Tem já a voz mais encorpada, mais recortada. É já o Francisco, o nosso Francisco de sempre. Conhecemo-lo há um mês: «Não podes, Francisco! Não podes ainda beber água... Só humedecer os lábios. Não vais poder, por enquanto, beber nada...». Resmunga qualquer coisa... Está «ranzinza», hoje. Afeiçoámo-nos a ele... O Francisco nunca pede ajuda... «Precisas de alguma coisa, Francisco?» «Eeeeuuu? Naaaa... Obrigado». Nunca se queixa... Mas não é de ferro... O enfermeiro traz-lhe a espátula e o copo... E passa-lha humedecida na boca e na língua... Despeço-me... «Até, Francisco... Dá cá um beijinho homem»... E ele deu...