domingo, 6 de março de 2011

O Regresso...


Domingo, 6 de Março – Eis o Francisco de volta… Está melhor, graças a Deus... «Olá, Francisco! Então, homem?»... O meu beijinho chega-lhe à pele ainda fresca... Descola dela uma espécie de chilreio... Um som estridente, estranhamente garrido... Encontro-lha ainda com o odor fresco da espuma de barbear recente... Desperto, o Francisco... Mas entubado ainda, o que o priva de falar… «Francisco, já sabes que não podes tirar o tubinho, não sabes?» Repito-me, sim, eu sei, mas não consigo evitá-lo... Sei disso muito bem mas paciência... Quero que ele melhore... Faz que sim, com a cabeça... Já sem máscara de oxigénio, desde ontem… Ao menos isso... Respira e suspira, embora, de vez em quando, lhe venha aquela expressão de visível irritação…

Talvez com o tubo na boca, que o não deixa articular-se… Ou com as voltas a que o sujeitam as AAM (Auxiliares de Assistência Médica)... Que, então, o não deixam mover-se por si e o vêem e revêem completamente nú… E «elas» são também as enfermeiras... «Elas», pois claro, e as assistentes… E até os médicos... Os médicos e os doentes… Por esta ordem, se seguirmos a ordem dos seus olhares... Uns porque o reviram, na sua higiene diária… O Francisco «toma banho na cama»… O que lhe desagrada, o que o diminui ou o perturba, profundamente... O que às vezes o convence, até, de estar mais velho do que pensa... Imagino eu, Francisco...

«Imagino, eu? Que parva que sou!! Não imagino não, Francisco. Não teria imaginação para isso»... «Talvez imagines que imaginas»... Dir-me-ias tu talvez... Soltas, então, naquela tua voz baixa, de resmungado murmúrio: «Então isto é alguma coisa?»… Virado e revirado, lavado e ensaboado: «isto é alguma coisa?»… Lembro-me de que quando te irritavas gaguejavas ligeiramente no «isto»... «Ist.. Ist'é alguma coisa?» - dizias tu, irritado... Até barbeado, por todas estas mulheres…

Aplicadamente minuciosas, aquelas… Apressadamente ocupadas, as outras… Tudo sem que possas sair da cama em que estás… Sem sequer te poderes sentar, sobre a cama e por detrás do cortinado... Mas soltaram-te, pelo menos, as mãos e os pulsos… E, portanto, agora revira-los, de vez em quando, como quem se admira de si mesmo, ou compra um imaginário relógio novo, de horas visíveis…
Uns porque o voltam... Outros porque gesticulam na sua direcção – «que será agora? Oh sorte…»... Mas não consegues dizer nada... Gesticulam e observam-te fixamente, como se quisessem entrar-te pelos olhos dentro… Que pode alguém fazer, assim deitado? Não sabem o que é estar deitado? Como podem curar-me então, se o não sabem?

A cirurgia, tal como a medicina no Ocidente a pratica, desconhece a técnica Oriental da imposição das mãos... Que é uma delicadeza só tida com pessoas «deitadas»... Estar deitado é dispor-se a seguir, a seguir e a ser a linha-limite, que divide a terra do céu... É ser e seguir essa linha na imobilidade do desamparo, de não se poder já contrariar a força da gravidade... O Francisco só conhece, pelo contrário, uma medicina agressiva e cortante, subtractiva e invasora, da extracção e do entalhe... Uma espécie de escultura do tempo, no contratempo da ciência... Como se o tempo da vida se tornasse, com a nossa doença, na contra-escultura de uma ciência, vinda na sua contra-mão, procurar atrasar a morte...

Uma ciência a contratempo da vida, portanto... Isto, da ciência, na contra-escultura do vivido, a fazer descontar-se do tempo de um tombo, de um passo ao lado... A ciência a girar, em sentido contrário, os ponteiros do instante, Francisco... Que se serve de próteses, de máscaras e de luvas, para entrar no nosso corpo sem, «na verdade», atingir «a sua» verdade... E munida de extensões metálicas apendiculares, para remexer no interior do teu corpo... Para lhe retirar excrescências e extrair pólipos ou grânulos, na nossa nunca sentida engrenagem, eliminando atritos e alisando dobras, ou saliências que ameaçam proliferar...
Põe aquele seu ar irritado, o meu querido Francisco, quando o olham... Aquele ar de quem apenas se vê a si mesmo à transparência, como que posto para o lado de lá de quem assim o olha, mesmo quando o seu olhar se desvia...

Apenas disponível para pensar noutra coisa… Mas não tem, na verdade, para onde olhar… Tudo é aquela mesma vasta sala, imenso aquário onde se flutua, quando se caminha sobre o chão de azulejo, como sobre a rede caída de um trapézio há muito abandonado... Lançado de mão em mão, entre o dia e a noite, entre hoje e amanhã … O que temo é que hoje seja, Francisco, o
súbito fôlego de um teu último hausto… Vens à tona e despedes-te… Até me parece mentira ver-te assim, mais fresco, mais rosadinho... Oxalá Deus te conserve, te mantenha vivo por bastante mais tempo... Bem sei que só me podes abanar a cabeça em resposta, enquanto te falo… Que não te posso sequer falar dos meus medos…

Ponho-me a imaginar o que isso será, Francisco: estar deitado e não poder falar quando nos falam… Eu que tenho o pavor das doenças... Ser olhado e observado de alto abaixo, de cabo a rabo, ser visto e revisto… Acenas-me com a cabeça, em assentimento… – que há-de ser, imagino eu, Francisco, também um modo de te escapares, de te esgueirares quando a coisa não te agrada… Ou então páras os olhos sobre mim, à medida que te falo… Como se espreitasses do teu lado de dentro e fosses, agora mais tu do que eu, quem se observasse… E a ti mesmo te observasses, nesse teu atento cálculo dos possíveis, a tua sobrevi-vência nos meus olhos e nos meus gestos…

Lembras-te de nos dizeres, um dia que te perguntámos, porque não ias até à sala de convívio: « Não gosto de grupos…»? Rimo-nos todos, com gosto… «Ah, Francisco! Olha à tua volta e repara em quantos seremos… Quantos, mais tarde ou mais cedo?! Consegues contar-nos? Nem eu consigo, … Inúmeros – cada um de nós na singularidade da sua sorte … O médico ontem deu-te quarenta e oito horas… Não a ti, na verdade, Francisco, mas a mim… Para que eu me vá habituando: à impossibilidade de me habituar… Quarenta e oito horas para reagires ao antibiótico, Francisco… Mas hoje estás, realmente, com bom aspecto… Talvez seja eu, hoje, que não estou lá muito bem… Um beijinho, Francisco, até amanhã…

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