sábado, 5 de março de 2011

A ponte...


Sábado, 5 deMarço - Acabo de sair do UCISU... O Francisco escapou, hoje de manhã, por um triz. Por um verdadeiro milagre ainda com vida. Entubaram-no de novo... Está com «uma pneumonia muito grave», diz-mo o médico espanhol que vem junto de mim, «que lhe apanhou os dois pulmões»... Mudaram-lhe o antibiótico inicial, como eu ontem já soubera, porque se mostrou ineficaz para a combater. Observo, com mais atenção, os monitores, sobretudo o da direita, que me responde a algumas perguntas mais imediatas:

Tensão arterial boa - 12,8 / 8,6 - boa saturação, «mas um pouco taquicárdico» - cerca de 117 pulsações por minuto - adianto-me eu ao médico, que me veio falar e que acaba de chegar... De forma que, durante a minha visita de hoje ele está de novo sedado. «Acha que ele tem condições de se safar, doutor?» «Bueno, vamos a ver»... Está agora menos dependente da máquina do que já esteve hoje de manhã. «Quase patinou» hoje de manhã, diz-me ele... Estranho ouvir a palavra a respeito do Francisco... Entubámo-lo e estabilizámo-lo... Entretanto uma enfermeira chega a seu lado e pede-lhe atenção para outro doente. Ele afasta-se...

Olho em redor, pela vasta sala quadrangular. É enorme, com uma franja imensa a toda a sua volta, de nichos de camas isoladas por cortinados. É um cenário verdadeiramente dantesco... Uma espécie de bojo intestino do Hospital, em que o mistério que separa a vida da morte se estampa na palidez dos rostos e me parece, de repente, vir a alojar-se, como cifrado, nos arabescos desses trajectos que, de um lado para o outro, de umas camas para outras, vejo os médicos desenharem, nos seus gestos esbracejados e as enfermeiras, outra vez de um lado para o outro, vão percorrendo em extensão...

E começo a ter a impressão de estar num gigantesco tapete flutuante, onde o chão suspenso começa imperceptivelmente a ondular... Passado pouco tempo abana largamente, como se alguém, em câmara lenta, o tivesse vindo sacudir com a sua enorme e poderosa mão invisível... Tento aguentar-me no balanço... E o suor começa a correr-me, frio, pela testa e pelas têmporas abaixo... Todo o edifício oscila agora dentro da minha cabeça... Olho de novo para o Francisco, que desta vez não me vê, a quem tornaram a pôr a sonda nasogástrica e que mantêm um tubo de dreno... Fixo-me nele para não me desequilibrar, para não mergulhar na minha tontura: «Hoje não me vês Francisco».

Olho de novo em volta. «Aqui está ALGUÉM» - penso agora para com os meus botões, mas a minha vontade é gritar... Tenho, por isso, de sair daqui rapidamente... «Aqui está ALGUÉM que serviu o seu país e passou», como dizer? Talvez assim: «Que serviu o seu país» e «passou SI-LEN-CI-O-SA-MEN-TE, por todas as provações» que, entretanto, lhe saíram ao caminho. Desde o dia 1 de Fevereiro passado... Abeiro-me dele, a passo incerto e insegura de mim, e a sua tensão sobe rapidamente e a máquina apita... Torno a afastar-me e mantenho-me, prudentemente, a vê-lo de longe...

O médico abeira-se-me, de novo, e completa a sua ideia: tudo depende de como o Senhor reagir ao antibiótico com que agora está... Referia-se ao Francisco, claro... QUE É, VERDADEIRAMENTE UM SENHOR... Ouço-me por dentro da minha cabeça: QUE É UM SENHOR repito-me, vezes sem conta, de mim para mim... E agradeço ao médico a sua franqueza... Aperto-lhe a mão... E volto-me para sair... E as lágrimas vêm-me agora... e correm e engrossam por dentro de mim, como se ali agora chovesse muito, como se desabasse o céu todo na minha alma, como se tudo em mim aluísse, como se eu mesma escorresse, no tombo ou no trambolhão morto de uma avalanche surda, e começasse a fazer um frio nocturno, cá por dentro de mim, e um abismo puxado do avesso começasse a subir por mim a dentro, como um enorme capuz sem cabeça... Justamente agora? Porquê agora? Nunca chorei, Francisco, acredita, até agora...

Mas também, porque não agora? Agora será um qualquer AGORA... Até amanhã, Francisco... O José Paulo está cá comigo... Abeiro-me, dou-lhe um beijinho... Não olho para o monitor, que agora não apita... Cá estarei amanhã, para ver se continuas ainda... na mesma cama... digo já longe da cama 15. A enfermeira Sílvia vinha já na minha direcção. O José Paulo já teve de sair para eu entrar... «Acabou-se o tempo da visita»... Dispo a bata verde e descalço as luvas amarelas... Atravessamos ambos calados, de mão dada, o corredor do piso 3, atulhado de macas e de gemidos. De vez em quando cruzo-me com colegas de trabalho a quem cumprimento e falo, que me falam carinhosamente... Ninguém percebe que choro... Ainda bem...

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