sexta-feira, 4 de março de 2011

A maré viscosa... (O labirinto)


4 de Março, sexta-feira - O Francisco foi transferido... Para o UCISU - Unidade de Cuidados Intermédios do Serviço de Urgências... Não foi ainda para o piso dos operados... Removeram-lhe, no entanto, tudo o que havia para tirar. De forma que, do que tinha de mau, no estômago e no esófago, o Francisco está livre... Eis, portanto, uma esperança... Uma nesga aberta... Desse ponto de vista, a operação correu bem, soube eu hoje pelo médico... Mas enfim: infelizmente, nem tudo está bem... E o Francisco está com uma pneumonia... Deram hoje por ela... E começaram hoje a dar-lhe um antibiótico mais eficaz... Deus queira que te corra tudo bem, Francisco...

Não tem já o tubinho no nariz... Puseram-lhe antes uma máscara de oxigénio. Por causa da dificuldade com que respira. Tem os pulmões apanhados e produz secreções abundantes, que lhe são extraídas por aspiração, periodicamente. Mas está mais conciliado, mais apaziguado... Tem agora uma só mão presa... Explico-lhe que não pode, em circunstância alguma, tirar a máscara de oxigénio, porque isso o iria cansar em extremo.... O que seria extremamente perigoso, neste momento... Pode significar um tombo no precipício... Um escorregão fatal... Apercebo-me de que o Francisco me observa atentamente, enquanto falo com o médico...

Perscruta todos os movimentos que faço, tudo o que ouço e digo... Porque se apercebe de que por mim passa informação que lhe é vital... Está portanto atento a todos os sinais... Nunca deixa de perguntar: «e o marido?» Todos os dias pergunta pelo «marido». Amanhã o José Paulo vai comigo. Ficou preocupado com o estado de saúde dele... E tenho a certeza de que ele sossegará mais, quando o vir... Oro para que o Francisco melhore... Para que ele se escape do peso morto dessa espécie de maré viscosa, que o pode arrastar para o fundo de uma fatal inanição, o pode vencer pelo cansaço... Senhor meu Deus, não o leves ainda, mesmo que saiba que ele ficará bem contigo, se ele é o homem que eu penso que é...

Livra-o desse atoleiro de águas paradas, que ameaça agora subir-lhe garganta acima. Dá-nos um pouco mais de tempo, para que nos cumpramos e reencontremos todos... Afasta-o do minucioso labirinto escuro em que ele ameaça entrar... Aquele mesmo labirinto em que nos traz o nosso infra-mundo, o mundo de nossa mais subterrânea e informe vida a germinar, com a sua obscura e secreta geometria, naquele enredo dos nossos mais fundos medos. Escuta, pelos seus mais ínfimos canais, o lamento desta minha atemorizada, aflicta e trémula, a seu modo silenciosa e sibilina oração... Que esta minha oração seja também a do Francisco. Amanhã vamos ambos ver o Francisco. Dou dois beijinhos ao Francisco e despeço-me dele: digo-lhe muitas palavras de carinho e de esperança e pergunto-lhe depois: «esperas por mim, Francisco? Acreditas em Deus? Espera até amanhã...»

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