quinta-feira, 3 de março de 2011

«Tou cansado da vida»


3 de Março - Desabafo do Francisco, hoje: «Tou cansado da vida». É um suspiro... Um desabafo... Olho para ele, fixamente. «Como te compreendo, Francisco...» - digo-o de mim para mim... Compreendo-o, sim. Porque não o deixam mexer-se, e ele está habituado a ser dono de si, e da sua vida... Mas eu recebo a frase em pleno rosto... Ela estala no ar, como um chicote... Dói-me, lancinate, como uma vergasta vibrante, vertiginosamente descida sobre o meu sucumbido ânimo... Ainda espadana no ar... Contorce-se, como um animal enérgico que saltasse, mortalmente ferido, atingido por alguma dor súbita, alguma perfuração ou golpe cortante... E fica-me ali às voltas, a dar-me voltas à cabeça, a latejar... A zumbir-me como uma vespa, com o seu ferrão ameaçador... Já ensurdecedora, a frase do Francisco, depois do choque que produziu em mim, a zumbir por dentro dos meus ouvidos. Dói-me essa frase... Dói-me ouvi-lo dizer aquilo... Atinge-me, fere-me na minha esperança, na nossa preocupação... Tenho a certeza de que o meu marido se vai preocupar, quando chegar a casa...

Olho para ele ainda fixamente. Faço-lhe, pela primeira vez, uma cara mais séria. Carrego a expressão de um ar mais grave... Dá-me vontade de o repreender. Mas não consigo. Eis o que me sai: «olha Francisco, não estás cansado coisa nenhuma!!! Não imaginas quantas pessoas se preocupam contigo todos os dias, quantas me perguntam por ti todos os dias. Estão sempre ansiosas por saber novidades tuas... Não está nada cansado não senhor!!! Seja paciente!!! Ouviu?! Não diga asneiras!!!»... É o máximo que lhe consigo dizer... Porque me é impossível não compreender a saturação em que está... A incomodidade e a saturação em que está, a exasperação... E o que me sai, o que digo, é num outro tom de voz que vai. Não consigo «ralhar» com ele... Como haveria de ser capaz? O Francisco fez -meu Deus!!! - uma operação delicadíssima... extremamente invasiva, muito agressiva...

E está ainda preso à cama por duas braçadeiras de velcro que, apesar do extensor que lhe deixa alguma liberdade de movimentos, lhe seguram os pulsos a uma certa distância da cama, para evitar que mexa nos «tubinhos» da alimentação parentérica e da drenagem de líquidos... Além disso, não pode beber água e tem os lábios secos... E está mais fraquinho, porque a sua alimentação se faz à base de nutrientes segundo um líquido, especialmente produzido nos laboratórios do hospital, que lhe é introduzido no estômago pelo nariz. Deixam-lhe, portanto, apenas algum espaço de movimento... Uma liberdade relativa. Não pode chegar à boca com as mãos, nem ao nariz... Nem à sonda nasal, nem ao tubo de dreno, que lhe extrai secreções do esófago... Mantém-se na Unidade de cuidados Intensivos...

Têm receio de que ele contraia alguma infecção... E ele está ainda muito débil, para poder sair... Como espantar-me com o seu tom de «condenado»?
Mas não lhe permito que tenha pena de si próprio... «Tudo menos isso, Francisco» - digo de mim para mim... Olho para ele, faço-lhe uma festa no cabelo e pergunto-me, a mim mesma, quando o irão passar para o cadeirão... É
coisa que não fazem com ele ainda na Unidade de Cuidados Intensivos. Só depois, já em convalescença, nas salas dos operados, no 4º piso. É a fase seguinte, no processo da convalescença. É o habitual, na recuperação do pós-operatório... A partir de certa altura, todos os dias um pouquinho de cadeirão... E depois cama de novo...

Tudo tem de ser assim, agora. Tudo vai ter de ser assim: espaçado, intermitente, segmentar... Tudo é, nesta fase da vida do Francisco, «escasso»... Raro e, ao mesmo tempo, difícil e precioso... Tudo vai ter de ser por tentativas, por pequenos gestos interrompidos, pequenos passos divergentes, sempre ensaiados e hesitantes... Como se caminhássemos sobre o fio precário de um equilíbrio nunca garantido, sempre reconquistado... Tudo se joga agora nessa corda frágil que se agita à nossa janela. Como o fio do horizonte à janela de um barco em pleno mar. Tudo depende, agora, da consistência e da persistência desse nexo, que nos divide a terra do céu e nos ajuda a distingui-los. E que nos mantém abertas as portadas do nosso ânimo. De vez em quando elas fecham-se, nesta fase mais agitada. Os seus batentes rodam, revoltos e batem violentamente. Movem-se como asas que se debatam, num voo atrapalhado e pesado, impossível por preso ainda ao chão de que se quer libertar, ensaiado sobre o campo do horizonte de um «lá fora» de que há muito fomos separados.

Do espaço de horizonte que entre eles se abre vêem-se o campo e as traseiras da nossa vida, o modesto quintal da nossa intimidade, ali o modesto acúmulo dos nossos bens. Ali estão eles, no fio bambo do estendal que ainda balouça, e onde pendurámos ontem as nossas memórias. Ele desliza e balouça, então, pairando como um suspensor. Balouça aos nossos olhos: está nele tudo o que somos...
Tudo de lá nos vem, agora, em pequenos fragmentos. Como o aceno de um rápido drapejo de um lençol, que lá se estendesse, junto daquela janela; ou o brilho súbito de um reflexo da luz que bate no vidro além; ou a nuvem a poeira que se nos levanta e envolve, quando o tempo esfria e o vento sopra.

Tudo em fragmentos, despojos dispersos, coisas várias e também rostos, expressões, sons, cacos do grande vaso quebrado pelo tempo da nossa memória, restos espalhados no chão de outros tempos, sobras do engalamento das nossas vidas... E na paciente recolagem desses pedaços, no enfiamento irregular das suas rememorações, a frase do Francisco vibra ainda como um chicote no ar... «Estás cansado da vida, Francisco?» pergunto de mim para mim... E passo-lhe, de novo, a mão pela testa...
Ele vira-se para mim: «e o marido?» Lá está ele... Abre-se-me um sorriso.... Depois rio-me, mais aliviada. Ele diz que tem saudades do José Paulo. Acho graça a essa sua preocupação que sempre teve, com o meu marido, seu ex-companheiro de sala. Conheceram-se ambos numa das salas do piso da Gastroentrologia, no Hospital de Faro.

O meu marido foi internado no mesmo dia que ele, com uma hemorragia intestinal. Esteve internado durante 4 dias. Depois normalizou, sarou e retomou, gradualmente, a alimentação normal de uma dieta de prevenção contra o colesterol. Deixou de comer carne. Passou a comer peixe. Sempre peixe grelhado, carbo-hidratos (batata, arroz) e legumes (couve de bruxelas, cenoura, couve-flor, bróculos, alface, tomate, cebola, alho, etc.). Foi-se restabelecendo: «o marido está a dar aulas, Francisco. Vem ver-te no fim-de-semana... Mas manda-te um forte abraço e diz que tu não te podes deixar vir abaixo, ouviste? Que tens de esperar por ele...»... Dá cá um beijinho, Francisco. Até amanhã... No fim de semana vimos cá os dois, «o marido e eu», está bem? Ele acena que sim e agita a mão de Capitão Gancho.

O José Paulo apresentou-me o Francisco. Contou-me que nunca o vira com visitas, durante os quatro dias que lá esteve... Que quando lhe perguntava se precisava de ajuda (queres que te traga outro urinol, Francisco? precisas de alguma coisa de lá de fora, da enfermaria) ele agitava aquela sua mão de Capitão Gancho e, educadamente, dizia, num gesto largo e desprendido, para nosso espanto: «Eeeeeeeeuuuuu? Naaaah! Tá tudo bem... Obrigado...». E sentava-se na cama em silêncio. Francisco, não vais até à sala de convívio? E ele olhava-nos com aqueles seus dois olhos cavos, a expressão sombria e ponderada de quem pensa um pouco e dizia-nos: «Naaahhh... Não gosto de grupos...». «Mas, Francisco, não se trata de grupos, trata-se de te mexeres e caminhares...» Queres ir lá connosco?» «Hummm... Vocês podiam fazer-me um favor?» «Claro Francisco!» «Se me podem ir comprar um maço de cigarros, para eu poder ir lá fora fumar um de vez em quando...» E lá fomos os quatro: eu e meu marido, o Francisco e o José, seu vizinho de cama.

A sua mão-dos-dois-dedos, essa espécie de extensão preensora, como que mecânica, com que, depois do brutal acidente de trabalho, acontecido já há anos, agarrava agora a colher de plástico. Movia-a no ar, quando nos cumprimentava ou, simplesmente, nos estendia ou recebia alguma coisa. Ou então naqueles gestos mais evasivos, sempre que discordava de alguma coisa. Lembrava-nos uma dessas tenazes de remexer o carvão aceso... Começámos a vê-la agitar-se mais, quando ele começou a comer as sopinhas de legumes que lhe levávamos. Pedimos para isso autorização às médicas e às enfermeiras do piso. Ele podia, não havia contra indicações, segundo o que constava na ficha médica do paciente da cama 8. Sopinhas, com feijão, alho francês, batata, cenoura, couve, bróculos, etc. temperada apenas com a junção de uma sopa de legumes em pó, uma «sopa de pacote» como se costuma dizer...

Não apenas sopinhas, mas também iogurtes, sumos... Iogurtes da «Leiteira», que descobrimos que ele tolerava melhor do que o «Fortimel» que lhe era servido no Hospital. Porque era doce... Com sabor a Morango, a Caramelo, a Bolacha... Mas sempre iogurtes sem pedaços, iogurtes inteiramente líquidos, porque a dieta do Francisco era líquida. E os sumos da Compal, de que ele gostava... Íamos eu e o José Paulo, dia sim dia não, numa excursão ao supermercado, restabelecer o stock do Francisco. Quando sobrava púnhamos aquilo em espera, na geleira da enfermaria. E dizíamos-lhe: «Francisco, tens dois iogurtes na geleira...»

Mas o Francisco não os pedia, com receio de ferir susceptibilidades e pôr contra si o Hospital. Porque não comer aquela «comida horrível» que a princípio lhe davam (uma papa de batata com cenoura, inteiramente sem sal), aquela «comida de galinhas» que lhe parecia feita de milho, e que ele punha de parte, era uma descortesia, uma falta de educação, cometida para com quem o mantinha vivo. Só mais tarde nos apercebemos disso. E nessas alturas, com receio de indispor contra si o pessoal que de si cuidava, obrigava-se a comer aquela «comida de galinhas». Comia a resmungar, como sempre: «então, diga-me lá, isto é alguma coisa?» O companheiro da cama 7 ria-se com gosto. O José - carpinteiro, que coincidência estranha... - muito trémulo ainda, ria-se desenfreadamente, de costas voltadas para nós, virado para a janela, só de o ouvir... Eram assim as gracinhas do Francisco...

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