segunda-feira, 7 de março de 2011

Pequena meditação... (em redor do Francisco)...


1. Segunda-feira, 7 de Março - O Francisco continua a melhorar... Desta vez vim ainda mais animada com o seu estado de saúde... Está a reagir muito bem ao antibiótico... Vê-se que ganhou mais cores... Tem o rosto mais iluminado... Talvez se safe, finalmente, desta pneumonia que esteve quase a levá-lo... Pareceu-me mais forte, mais fresco, mais esperançado... Está mais «ligado», enfim, como dizem os meus filhos... O termo «ligado» tem aqui este sentido: o de uma certa «sintonia»...

2. «Estar ligado» é estar em sintonia, permeável à energia que lhe faço chegar, vinda de mim e de todos os que o acompanham... aqui no blogue ou no Brasil e em Portugal, cada um em sua casa... Mais permeável mesmo que isso não suponha nenhuma imediata concordância ou, felizmente, alguma espécie de sujeição... Quando se exprime um ponto de vista, é comum, no Brasil, perguntar-se «imediatamente», logo a seguir: «tá ligado?»

3. O que supõe, nessa sintonia, uma certa continuidade com o seu exterior... A comunicação de uma energia, a comunicação de uma comunicação, ou de uma certa comunhão... Uma certa comunidade tonal, digamos assim... De energia, de «tónus» em «sintonia»... Uma «sintonia» como a que o termo «ligação» aí supõe, envolve, assim, a experiência de uma certa tonificação, de uma determinada «disponibilidade», uma certa vivacidade... Ela é, ainda, anterior a qualquer espécie de conceito ou compromisso definitivo... A qualquer espécie de opinião definida ou de tomada de posição, de manifestção de força, também...

4. A tonificação, o vigor da sintonia ou da ligação, não são aqui a força plena, bruta ou abrupta... Um certo compromisso firmado, um certo nexo de «pertença», gerado por qualquer pacto expresso, tem sempre como condição de possibilidade uma certa e prévia ou antepredicativa «ligação», uma certa e tonificante «extensão» tonal... E o Francisco, posso dizer, hoje, que ele «está ligado»... Mais atento, desperto, ligado... Mais tonificado e disponível... Para que alguém esteja «ligado», é preciso, pelo menos, que entre o seu espaço interior e o seu espaço (afectivo) em redor, no seu espaço interior e exterior, haja uma espécie de continuidade, de propagação vibratória, de sensibilidade comovida, de permeabilidade «co-mocional», de livre-trânsito prévio ou de anterior atravessamento ... Tal é a pré-condição de todo o «trauma», de toda a barreira ou clausura, de toda a dissociação ou morte, de todo o choque ou de toda a resistência...

5. E, portanto, antes de qualquer conceito ou opinião formada, é preciso, para se estar «ligado», que haja uma espécie energização prévia, de antepredicativa confusão ou antecipada continuidade tonal, de prévia corrente de energia e de disponibilidade, de entrega e de absoluta e não-premeditada entrega ou vivacidade... É isso estar «ligado»... É como se disséssemos «sim», mas um sim que não é ainda nenhuma concordância, nenhuma aceitação determinante ou determinada... Como se disséssemos «sim» à vida, à corrente de vida que através de nós se proaga... Isto antes de «sabermos»... Antes, sequer, que nos perguntem e respondamos o que quer que seja... Estar ligado significa dizer um sim anterior a qualquer limite... Um «sim» anterior a toda a recusa ou negação, a todo o limite ou escolha, a toda a decisão precipitada pela indecisão e a indecidibilidade...

6. O que é, na verdade, sobretudo conforme à nossa mais íntima verdade... À nossa verdade biológica - posto que somos prematuros e o nosso código genético tem de ser activado, em contacto com o nosso Outro, a nossa mãe ou o nosso Rosto... E psíquica, também... Porque somos biologicamente prematuros e psiquicamente... desejantes... Porque do ponto de vista do sujeito que somos, da libido e da pulsão, somos essa primeira cativação, essa nossa dependência, esse nosso desejo do desejo do Outro... Pois, quando nascemos não «temos» ainda nada... Não podemos sequer ser «nada»... Somos um «eu-posso», se assim se pudesse dizer, pré-egológico... Um eu-posso ainda anterior ao «eu»... Uma espécie de vontade que preside ao trânsito da substância materna...

7. Nada senão essa nossa «ligação», essa ligação sem possessivo, esse nosso «sim» pré-egológico, pré-lógico e pré-cronológico também... Um sim antes de qualquer compromisso, de qualquer pergunta ou de qualquer resposta que se lhe siga... É nessa disponibilidade da «sintonia», nessa acolhimento da energia pela entrega do corpo exposto, nessa abertura pré-lógica e pré-cronológica que se há-de precipitar «o que» / «quem» depois viremos a ser... É essa ligação que faz, antes da possibilidade de qualquer resistência, de qualquer oposição ou diferenciação supostamente plena, a possibilidade do dom e do perdão, a possibilidade da impossibilidade... É ela que faz, num certo estádio, com que os bebés «acabem por aprender» a seguir os gestos e as inflexões da voz de sua Mãe, a voz e o sorriso do seu grande Outro...

8. E isto antes mesmo de a voz desse Outro poder ser dita, por sua vez, por algum Outro desse Outro, fixando-lhe o sentido ou instaurando-lhe o limite... A ligação colhe e acompanha os movimentos do olhar... Ela é a confiança do corpo exposto, a abertura do nosso ser como acolhimento... Nós somos, em primeiro lugar, essa nossa disponibilidade, essa nossa sintonia, essa nossa abertura ao outro que é também o Outro ou Deus... Cada um de nós é uma espécie de Abraão, fiel a esse apelo intimamente estranho e estranhamente íntimo do Outro em nós... É isso «estar ligado» ou disponível: estar capaz de «continuar (n)o exterior»...

9. SER capaz de «ser», para além dos limites estreitos da nossa percepção, ou do nosso conceito, da nossa auto-imagem... Estar ligado supõe, portanto, uma espécie de CORRENTE... Não de opinião, mas de «CO-MOÇÃO», de MOVIMENTO conjunto, ou de CO-MOVIMENTO e, portanto, de «religação» ou de RELIGIÃO... Daquela religação que a palavra «religião» quer ela própria dizer, na sua etimologia... E assim, «estar ligado» é, também, participar do movimento conjunto de uma «fé» relativamente «indistinta», ecuménica e tolerante, aberta, por definição... Pois a fé pressupõe essa disponibilidade ou essa «entrega» que é ainda anterior às certezas da evidência, do conceito, da visão ou da constatação...

10. O que não quer dizer que ela deva privar-nos de pensar e, sobretudo, de pensar criticamente... Mas quer apenas dizer que a ligação ou a sintonia da «co-moção» são as pré-condições de possibilidade de toda a crítica, o sentido imanente da exigência de todo o conceito, de toda a evidência perceptiva ou razão... É aquilo que ainda me mantém a falar, mesmo com quem discordo, sempre que e enquanto discordo radicalmente de alguém, o que me mantém a falar com esse mesmo alguém: porque continuaria eu a falar com alguém senão por uma sintonia pré-lógica e pré-cronológica, pré-analítica mesmo, que me constitui a mim como «mesmo» a partir do outro, «mesmo» como ser disponível ao Outro? «Pertencer» é ser continuado e continuar no exterior (por) alguém...

11. Mas é também, uma coisa não vai sem a outra, continuar alguém no «seu» exterior... E o «exterior» não é um meio homogéneo... O «exterior» é o campo da dobra e da heterogenei-dade... E essa «ligação» é, portanto, por um lado, anterior a qualquer distância objectiva, a qualquer lógica simplesmente dissociativa e, por outro lado, diferenciada... Continuando o meu exterior sou diverso e vário, múltiplo a perder de vista... Essa ligação com o exterior é constitutivamente diferencial e ao mesmo tempo contínua: pois é ela que que me dirige a atenção e que me faz voltar a cabeça quando ouço, por exemplo, um som que se destaca...

12. Porque a volto se ninguém me chama? Se ninguém me nomeia ou evoca, se ninguém invoca o meu nome ou me convoca? Que há de comum entre o meu nome, nos ressaltos da sua sonoridade e da sua articulação, e um silvo estridente que se assemelha ao terrível apito da ausência ou do chamamento, da morte inclusivé, que ressoa nas máquinas que, no hospital, atestam que o meu coração não bate já, que ele vacila ou entra em falência, que o meu corpo entrou em si mesmo, se remeteu ao seu mais insondável segredo ou mistério? Um som soprado ou emitido como o sinal de ausência de frequência cardíaca, uma espécie de silvo da serpente, como que a serpente que aparece nos símbolos da medicina, aquela de cujo veneno se retira, igualmente, o antídoto para a sua mordidela fatal...

13. Um apito que é a própria lisura de som inerte, contínuo na sua alarmante estridência, a própria insignificância, na sua extensa e linear distância, em relação a qualquer compreensão, a qualquer sentido perceptível e possível, dir-se-ia? É essa mesma disponibilidade pré-analítica e pré-cronológica, aquela que aproxima ou reúne o nome próprio ao alarme da emergência médica, o som agudo de um aparelho ao apelo de uma identificação e de uma compreensão que pode vir a dar lugar a uma história...

14. É essa mesma «ligação» a uma História que bem pode acabar por seguir-se ou por vir a começar, que bem pode precipitar-se e vir a contar-se, a começar a contar-se como realmente acontecida... Que, enfim, bem pode contar-se como acontecida mesmo já enquanto decorre... Isto é, mesmo «já» enquanto ainda mal sonhada, mesmo quando ainda a si mesma antecipada, antecipada no seu projectado fim, precipitada na sua própria invenção, na antecipação do seu anteprojectado ou desejado fim, realmente acontecida como ficcionada na sua precipitação de si mesma... O que é uma história cujo rumo ou cuja rota, cujo destino ou desfecho nos não é dado de antemão e que, nessa mesma medida, é uma história verdadeiramente acontecida, verdadeiramente vivida? Não será a vida mesmo isso, a invenção ou antecipativa anteprojecção de diferentes fins como sentidos e finalidades possíveis, esperados e sonhados para histórias que nos envolvem e nos transportam no seu próprio decurso?

15. Histórias a decorrer ou que, decorrendo ou acontecendo, mesmo ainda enquanto o nosso discurso permanece em busca da sua própria conclusão, do seu próprio sentido conclusivo ou da sua própria morte, histórias à medida da história que nos vai então acontecendo por dentro das palavras que usamos e que nos levam numa direcção ou noutra, histórias em que vai acontecendo uma outra história, em que nos vai acontecendo uma história sempre outra, uma história ainda perdida ou suspensa do seu próprio rumo, do fim a que há-de, dir-se-á então, pertencer?

16. É isso a «ligação»... Visto que foi assim que nós conhecemos o Francisco: nada conhecendo dele, ouvindo-o nas suas meias-palavras e ouvindo-nos a nós próprios nos seus protestos, muitas vezes imperceptíveis, ou a desafiar a nossa capacidade de compreensão... Nada conhecendo do que pôde contar historicamente como o depois realmente acontecido, que pôde realmente contar-se a si própria em nós, ou ser tida em conta para fora do seu esperado fim... A «ligação» não é um resultado da consciência... Nem mesmo da previsão... Muito menos da consciência que se busca a si mesma, ou um seu efeito, por fora do vivido ou na sua abstracção, ou redução abstractiva... Pelo contrário: NADA DE GRANDES ANÁLISES para se «ESTAR LIGADO»...

17. Nada de grandes «análises»... A NÃO SER - e a aposta é aqui desmesurada - A DIFÍCIL ANÁLISE QUE ACEITA A CONTRA-ANÁLISE E, PORTANTO, AQUELA QUE CONDUZ À EVIDÊNCIA DA NÃO-EVIDÊNCIA... Não será isso precisamente a fé? A fé anterior e constitutiva da possibilidade de toda O CEPTICISMO, DE TODO O LUXO da descrença ou do pessimismo e, portanto, uma fé sempre a salvo, sempre disponível para ser recuperada, em sintonia com a sua própria «sobre-vivência» à evidência? Na ligação, não se aconselha nenhuma persistência no traçado dos limites, no contorno dos espaços... Porque só se chega à ligação (à religião) por esta espécie de hiper-rememoração e de «HIPER-ANÁLISE»: a que aceita, na sua prórpria CONTRA-ANÁLISE, prosseguir até à pressuposição da mais remota evidência, da evidência mais recuada, a evidência da impossibilidade da evidência... A evidência da impossibilidade da evidência na sintonia própria da «PRÉ-ANÁLISE»...

18. A ligação ou a religião deveriam então ser esta «ligação», mas sempre enquanto momento de abertura à análise... A ligação da fé é sempre a sintonia de uma disponibilidade pré-analítica, que é sempre EXIGENTE E PROMISSORA DA ANÁLISE... Porque, de contrário, segundo um velho preconceito dos racionalismos mais dogmáticos, não haveria no sujeito senão CONSCIÊNCIA... Ora, nós não somos Deus... E isso, esse dogmatismo contra-religioso, nos desligaria e arrancaria a nos mesmos, ou nos desgarraria dos que nos são mais próximos, nos arrancaria a nós MESMOS, nos extrairia da nossa continuidade, da suspensão ou do esbatimento de fronteiras que somos, para nos deixar cair na INDIFERENÇA da nossa diferença INDIVIDUAL... Sempre que acolhemos - integramos e, por outro lado, respeitamos, numa dupla e tanto mais contraditória quanto justa obrigação ética, não apenas o OUTRO que nos continuará, mas também o OUTRO de quem seremos continuação ou ligação... Estamos ligados... Mas estar ligado não significa anular-se, nem indiferenciar-se, muito pelo contrário...

19. A ligação é o que nos alterará, fará de nós OUTROS... Outros dos que nos continuam e a quem nós continuamos... Porque o contrário disto, esse exercício dogmático do recalcamento dessa diferenciadora e alterante ontinuidade, nos distancia da vida e nos sujeita ao culto da diferença encapsulada na diferença plena.... Cedemos então ao medo e aos nossos mais temíveis espectros: «e se fosse precisamente o contrário de tudo o que espero?» É a pergunta típica de quem está DESLIGADO... O Francisco, graças a Deus, deveria hoje dizê-lo, «está ligado»... Está, pelo menos, mais ligado... Está... como dizer isto de outra maneira? Está... eis uma palavra, uma expressão possível: ESTÁ VIVO... O FRANCISCO ESTÁ VIVO!...

20. Não (apenas) por respirar, mas sobretudo por «estar ligado»... Por me estar ligado a mim e ao José Paulo... Que todos os dias queremos saber dele... Que nele vemos, todos os dias, o exemplo da coragem que muitas vezes nos falta... Mas que o não queremos sacrificar à responsabilidade de ser, para nós o modelo exclusivo, da coragem que não sabemos se conseguimos CONTINUAR... Falo da tua CORAGEM, FRANCISCO... ÉS UM HOMEM DE MUITO VALOR E DE MUITA CORAGEM e EU E O JOSÉ PAULO TE ADMIRAMOS E QUEREMOS MUITO BEM, DESDE A PRIMEIRA HORA, FRANCISCO... E tu apertas-me a mão, enquanto te falo... A mão do Francisco é uma tenaz de dois dedos, enganchados na minha... E ele, o Francisco, TU, VOLTA-SE ou VOLTAS-TE, AO OUVIR-ME, para o OUTRO LADO, QUE ME CONTINUA, para chorar... «Ao ouvir-me» porque ele me «eESTÁ LIGADO»... Porque não pode, na posição e na situação em que está, evitar que as lágrimas lhe corram... Pois que corram, livres, pelo campo da tua face...

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