sexta-feira, 5 de junho de 2009

Auto do Desempregado

E agora, que vou fazer?
Ando vazio, a caminhar no interior de dias vazios. Há duas semanas.
E ainda não reuni a força necessária para dizer à minha mulher que fui um dos 180 despedidos. Mas suspeito de que ela adivinha qualquer coisa.
Não será, propriamente, a situação em si que lhe desperta a desconfiança; mas algo, um pressentimento obscuro, tenaz e desconfortável começa a invadi-la.
Conheço-a muito bem. Passámos muitas coisas juntos. Era uma rapariga de grandes olhos luminosos num rosto alevantado que transpirava confiança e coragem.
Quando estive gravemente doente manteve-se à minha beira, vigiando-me, tomando-me o pulso, observando a febre.
"Nem te atrevas a deixar-me!", exclamou, certo fim de tarde, presumindo, pelo meu aspecto, que a doença se agravara. Fui agitado por estranho solavanco.
Olhei-a e ela sorriu: "Eu sabia. Eu sabia que me não deixavas!"
É um pouco grotesco, lembrar-me de estas coisas; mas são estas coisas humildes e modestas que formam a consistência das pessoas.
Curioso!, há quanto tempo não lhe digo que a amo, há quanto tempo?
Quantas vezes lho disse? Não dá muito jeito, reconheço; mas certamente lho disse, embora em português não soe bem; em inglês talvez sim.
Talvez. Como fui parar a esta rua? Acontece-me agora isto. Ando por aí à toa, um impulso irresistível e secreto leva-me a caminhar pelas ruas da cidade onde outrora só raramente ia. Deixa-me ver as horas.
Este relógio foi- -me por ela oferecido, quando fiz 45 anos, há mês e meio.
Nessa altura já havia rumores, no escritório, de que as coisas não caminhavam bem, gente a mais, encomendas a menos. Nada lhe disse. Apenas boatos; no entanto, começámos a olhar uns para os outros, aquele é mais velho, quantos anos tem ele de casa?, 30, ena, pá!, e de idade?, ena pá! Sou mais novo.
Mas há mais novos do que eu. E se pintasse um pouco o cabelo? As brancas dão-me um aspecto mais pesado. Apesar de tudo, tenho fé.
Mas manter a fé é difícil, tendo em conta o que por aí se vê.
Tenho vergonha de vaguear pela cidade. Tenho vergonha de dizer em casa que fui despedido, "dispensado temporariamente", como me informou a menina da administração, examinando-me com a pesada compaixão de quem nada sabe sobre dor e sofrimento. Tenho vergonha de ser reconhecido por algum vizinho.
Tenho vergonha de nada ter para fazer. Tenho vergonha de ainda não ter a coragem de revelar à minha mulher a situação em que me encontro. Tenho vergonha de admitir que não voltarei a arranjar trabalho. Tenho vergonha de ter de me inscrever no Desemprego. Tenho vergonha de ter desejado que fossem outros os nomeados para ir para a rua.
Tenho vergonha de ser quem sou. Tenho vergonha de ser velho.


Baptista-Bastos
Escritor e jornalista

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